Páginas

Os militares e as vítimas da ditadura

Editorial


Os 26 anos consecutivos de democracia - o mais longo período sem rupturas da história da República brasileira - , dos quais 23 sob uma Constituição que restabeleceu a hegemonia do poder constituído civil, não parecem ser suficientes para evitar momentos de mal-estar no relacionamento entre o governo federal e militares.
No centro das insatisfações está a compreensível reclamação de familiares de desaparecidos na guerra suja dos anos de chumbo por informações sobre o paradeiro de parentes tragados nos porões da ditadura militar. A forma, porém, como a questão começou a ser encaminhada, na fase final da Era Lula, semeou discórdias.
Numa demonstração de, no mínimo, desastrada insensibilidade política, o governo passado permitiu que grupos da esquerda autoritária, incrustados no poder, utilizassem a terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos para propor, na prática, a revisão da Lei de Anistia, a fim de permitir a condenação na Justiça de agentes públicos autores de sequestros, tortura, assassinatos etc. Ora, a campanha com esta finalidade deflagrada pelo então ministro da área de direitos humanos, Paulo Vannuchi, com apoio do chefe da Pasta da Justiça na época, Tarso Genro, hoje governador do Rio Grande do Sul, não teria, como não teve, vida longa, pois a Lei da Anistia foi recíproca, como reafirmaria o próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento de ação proposta pela OAB. Quer dizer, perdoou militares, policiais e também passou a borracha no prontuário de terroristas e guerrilheiros.
O esboço de uma crise militar foi abortado pelo compromisso do governo de evitar revanchismos e pela atuação do ministro da Defesa, Nelson Jobim, mantido pela presidente Dilma Rousseff. O compromisso está preservado, tanto que Jobim e a nova titular da Secretaria de Direitos Humanos, ministra Maria do Rosário, trabalham juntos para conseguir aprovar no Congresso o projeto de criação da Comissão da Verdade. Se fosse para tentar criminalizar militares e policiais - legalmente impossível - Jobim não estaria ao lado de Maria do Rosário.
É neste contexto que reportagem do GLOBO divulga documento redigido pelo Comando do Exército, e apoiado pela Marinha e a Aeronáutica, contra a criação da Comissão, idealizada para levantar as informações reclamadas pelas famílias de vítimas da ditadura. O Ministério da Defesa ainda tentou desqualificar o texto, afirmando ser ele do ano passado. Porém, o desconforto voltou a Brasília, quando já se havia superado o incidente da míope avaliação do recém-empossado chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general José Elito Siqueira, de que existir desaparecidos políticos não deveria "envergonhar".
A divulgação do documento serve, ao menos, para a reafirmação de alguns pontos. Como o de que os familiares têm direito de saber o destino de parentes sob custódia do Estado - mesmo que fosse de um braço semiclandestino dele. Os militares, por sua vez, não precisam se preocupar com o revanchismo, já descartado pela Justiça, mas têm razão ao reivindicar a apuração de crimes cometidos pela esquerda armada. A história precisa ser contada por inteiro.

O Globo

Nenhum comentário:

Postar um comentário