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DE SARGENTO DO EXÉRCITO A PROMOTOR DE JUSTIÇA: UMA TRAJETÓRIA RESPEITÁVEL

Existem entidades e servidores da Administração Pública que vivem o dia-a-dia da segurança pública sem ser necessariamente policiais. É o caso de juízes e promotores de justiça, que embora não tenham um papel de execução no sistema, atuam, por exemplo, no julgamento de infrações penais cometidas por policiais.
Em alguns casos, esses servidores vão além da atuação técnica que lhes é exigida, e se aprofundam no tema segurança pública. O Promotor da Vara da Auditoria Militar da Bahia, Dr. Luiz Augusto, é um exemplo nesse sentido. Professor da Academia de Polícia Militar e formado no Curso de Gestão Estratégica em Segurança Pública, o CEGESP, é assíduo debatedor dos assuntos ligados ao tema – algumas vezes com opiniões que geram polêmica.
O Abordagem Policial entrevistou o Dr. Luiz Augusto, que falou de assuntos como execuções extrajudiciais cometidas pelas PM’s, o caráter militar das polícias, a presença de homossexuais nas corporações (tema que acabou lhe dando a pecha de conservador na imprensa baiana) etc. Apesar de longa, a entrevista deve ser lida por quem se interessa pela discussão desses e de outros temas, sob o prisma dum promotor da justiça militar e especialista em segurança pública:

Abordagem Policial: O senhor poderia nos falar sobre sua história de vida, formação… O senhor já foi sargento das Forças Armadas, não é verdade?
Dr. Luiz Augusto: Como se diz por aí, “a minha história é vulgar, mas algo fica provado….”. Sou um homem de luta e criado para a luta. Nada foi fácil em minha vida. Nasci filho de um funcionário público federal e de uma operária de fábrica de charutos, em Muritiba, Bahia, terra que também serviu de berço ao poeta das Américas. Dessa junção entre Simão da Malária e Lourdes Charuteira, nasceram outros três irmãos meus. Hoje sou órfão de pai e mãe, porque ambos já foram pro andar de cima. Certamente, dentro de algum tempo, iremos reencontrá-los, espero.
Comecei a vida estudantil pra valer, isso sem levar em conta as escolas primárias da época, no Ginásio Castro Alves de Muritiba, uma escola particular de nível ginasial, hoje fundamental II, e que foi criada na minha cidade porque inexistia escola pública nesse nível por lá. Por isso, eu e meus colegas à época, concluímos o segundo grau fora de Muritiba. Muitos, como eu, vieram para a capital. Aqui estudei no Duque de Caxias e no Severino Vieira, escolas públicas e de nível, pelo menos à época.

Em 1972, já sargento do EB, resolvi enfrentar uma faculdade, e escolhi a que me dava condições de frequentar aulas sem usar de subterfúgios, considerando que na tropa o expediente não permitia que estudássemos durante o dia, e à noite poucos cursos superiores funcionavam em Salvador. Fiz, entâo, vestibular para Análise de Sistemas na UBT. Escolhia-a porque seus cursos eram noturnos. Só que não me apaixonei pela escolha, provavelmente porque naquele tempo a área de informática era ainda embrionária. Somente existiam computadores no Banco do Brasil, na agência do Banco Central, na IBM e no CPD da UFBa, onde tínhamos nossas aulas práticas. Eram computadores imensos, e depois dos fluxogramas tínhamos que perfurar cartões para alimentar a CPU e processar o programa feito.

Era uma faxina dos pecados, e como a faculdade também não ajudou muito, porque era uma universidade particular oriunda de Fortaleza, cuja proposta era implantar um campus aqui em Salvador para atender a um seguimento da população que, por força das ocupações profissionais não podia frequentar aulas diurnas, como no meu caso, que sendo militar de carreira e servindo numa unidade especial (PE), ficávamos em prontidão ou sobreaviso dia sim e outro também, terminei trocando o curso da faculdade por um curso operacional no Rio de Janeiro. No retorno não mais me matriculei nele, e só voltei a pensar em curso superior em 1977, retornando aos bancos acadêmicos através de novo vestibular, desta feita para a faculdade de Direito da UCSal, onde me formei em 10 de agosto de 1985. Advoguei por pouco tempo, e depois fiz concurso para o Ministério Público do Estado da Bahia, onde entrei em 10 de abril de 1988, e onde estou até hoje, ocupando a Promotoria de Justiça Militar Estadual desde janeiro de 1995.

Obviamente que não me limitei à graduação, já que sempre gostei de estudar. Então, uma vez formado, fiz algumas pós-graduações, entre elas o Curso de Gestão Estratégica em Segurança Pública, o CEGESP, onde fui laureado com o segundo lugar numa turma de 37 alunos, inclusive um deles um coronel fechado, e que durante o curso se tornou comandante-geral da PM do seu estado, o Piauí. Da minha turma (2003) já podemos contabilizar alguns coronéis. Também tivemos como colegas delegados de polícia e peritos criminalísticos do DPT. Sou também especializado em Direito Processual Penal pela Fundação Faculdade de Direito da UFBa, e possuo diversos cursos de extensão em áreas diversas como Direito Ambiental, Administrativo, Eleitoral, Financeiro e Tributário pela Escola Superior do Ministério Público.

Nessa busca incessante de conhecimentos, cheguei a ser selecionado para o mestrado em Ciências Criminais em Coimbra, Portugal, mas problemas de ordem institucional mataram-me o sonho. Simplesmente não fui liberado à época (1996), mediante alegação de falta de amparo legal para manter-me num curso longo fora do país. A saída, segundo me disseram, seria a “licença sem vencimentos para tratar de assunto de interesse particular”, ou seja, inviabilizaram o mestrado em face de eu ser o único provedor da minha família, e também por ter como única renda os vencimentos do cargo de promotor de Justiça. Este sonho já está arquivado ad eternumm, embora agora possa até realizá-lo, já posso me aposentar. Meus projetos, entretanto, são outros, especialmente o de retornar à advocacia.

Quanto à carreira militar, depois de uma passagem sem sucesso na Marinha de Guerra, como aprendiz de marinheiro, fui para o Exército, obviamente que para prestar o serviço militar inicial. Só que uma vez incorporado (1967), voltei aos estudos logo no ano seguinte (1968), aproveitando, assim, todas as oportunidades que tive para estudar. Trocava até serviço para ficar no quartel nos fins-de-semana, só para estudar. Tornei-me cabo em 1969 e sargento de infantaria em 1971. Só que a vida militar, pra mim, descortinou um outro aspecto: é que questionador, provavelmente ainda revoltado com o desligamento injusto da Escola de Aprendizes, terminei tendo alguns atritos com colegas e até superiores, e isso me tornou um elemento questionador, em todos os sentidos, e foi exatamente por esse perfil que ouvi de um subtenente, na porta do alojamento de subtenentes e sargentos, que eu tinha perfil de advogado, e aí perguntou-me: “por que você não faz vestibular para Direito?”. O resultado é este aqui e agora.

Mas a vida militar para mim, apesar dos obstáculos e dos problemas referidos, foi a melhor fase de minha vida. Sou grato, portanto, à carreira militar pelo homem que hoje sou, e se você foi meu aluno, lembrará que a primeria coisa que eu falava em sala de aula quando da minha apresentação à classe, era que pudessem falar comigo tranquilos, porque eu falava a linguagem do alunado, e em seguida apresentava-me como ex-sargento de carreira do Exército. Isso, amigo, é orgulho, e muito, e ser o que se é, e pronto. Uma vez um aluno do CHOA me perguntou até que posto eu tinha chegado no EB. Respondi-lhe: “não passei de terceiro sargento”, e ele me olhou com incredulidade.

Ora, a gente pode até moldar nosso caminhar, mas não podemos fugir do destino, da vocação. Quando falo assim com colegas que lá deixei, ouço de alguns que eu guardo esse amor pela farda e pela força terrestre porque saí cedo, ou seja, não ralei, como eles, por mais de trinta anos, e muito menos enfrentei idiossincrasias de superiores e até de colegas. Respondo-lhes simplesmente que eles podem até ter razão, porque nos poucos 12 anos em que estive na caserna, tive alguns desentendimentos por conta de tais fatores, mas meus problemas maiores foi contra injustiça que via muitas vezes no quartel, o tal do “erre quero”. Vi muito “fulano, você está detido até segunda ordem”. Aí eu perguntava a quem tinha dado essa esdrúxula ordem de deter alguém até segunda ordem, a razão da medida, e ouvia sempre algo do tipo “eu é que quero”.

Obviamente que a pessoa ouvia sempre algo do qual não gostava, como quando disse a um tenente da PE que ele não era dono da liberdade e da vida de ninguém, só porque ele deixou um cabo detido por uma patrulha da PE, mediante a determinação de recolhê-lo preso ao quartel, e eu que era o sargento supervisor da área do policiamento, depois de analisar e caso e chegar a conclusão que era simplesmente para anotar e liberar, assim agi de acordo com o vade mecum do PE. Só que ele acusando-me de ter-lhe desobedecido, ameaçou-me, e eu respondi-lhe que adotasse a medida que quisesse, mas que eu agi de acordo com o regulamento, e que ele não era dono da vida e da liberdade de ninguém, mesmo de um subordinado transgressor. Naquela época, amigo, eu já pregava, sem querer, o princípio da legalidade.

E sempre fui intransigente com relação a tratamento cortês e respeitoso. Por isso, tivesse continuado até a reserva remunerada poderia até pegar punições que certamente me prejudicariam, seja na liberdade, seja na carreira, como no caso acima no qual o oficial poderia me dar voz de prisão em flagrante por crime de recusa de obediência. Mas essas são conjecturas “se”, “se”, “se”, partícula condicional que nos remete ao passado para pensar no que poderia ser, quando podemos construir o ser atual e programar o do futuro, é perda de tempo, considerando que ninguém, até hoje, pelo menos na vida real, porque na ficção isso já foi feito, retornou para recomeçar o que deixou atrás.

Portanto, e para não me alongar muito, porque tenho uma mania arretada de romancear as coisas, você pode ter certeza que ser militar era tudo que eu gostaria de ter sido, mas o que me levou a mudar o itinerário de minha vida foram decepções, embora afirme com todas as letras que o militarismo ainda é uma das carreiras mais bonitas e dignas que conheço, já que inexiste outra mais forjadora de caráter do que ele, e esse convencimento só adquiri na vida civil. Tivesse ficado, até hoje estaria lastimando a mudança que poderia ter feito, e não fiz, ou sequer teria condições de fazer essas comparações, não é mesmo?

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