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Melhor não subestimar

Nas entrelinhas
Alon Feuerwerker

Correio Brasiliense

As revoltas democráticas árabes produzem uma dúvida no público. Apoiá-las e correr o risco de as novas democracias serem “democraticamente” sequestradas pelo extremismo de origem islâmica? Ou sustentar no poder déspotas e cleptocratas, para tentar evitar o mal supostamente maior? Desde, naturalmente, que o despotismo se comprometa com transições de poder e de modelo.
É uma dúvida até certo ponto intelectual, pois não consta que as massas árabes estejam aguardando o mundo decidir. Um aspecto frequentemente minimizado é este: revoltas e revoluções sociais tem um vetor “objetivo” pouco controlável. Quando a onda vem, enfrentá-la não garante que a mesma deixe de propagar.
Como aquele barco japonês em seu esforço para atravessar o tsunami.
Qualquer análise prudente da situação concluirá que o processo está apenas no começo, e não respeitará fronteiras. E será complexo.
Agora mesmo o Hamas e outras organizações extremistas ajudam a promover uma escalada bélica contra Israel.
O acirramento objetiva dificultar a reconciliação palestina (com a Fatah), reconciliação em termos aceitáveis, regional e globalmente. E também abortar os movimentos de massa palestinos que, sob a capa da pacificação interna, pedem na verdade democracia, eleições e o fim do domínio autocrático.
Os extremistas gostariam de levar a uma confrontação que dê espaço para reintroduzir artificialmente a questão nacional palestina na agenda. Assunto que insiste em não comparecer.
O tsunami democrático árabe é fenômeno mais profundo, de dimensão histórica. O adjetivo tem sido usado em excesso, mas é o caso aqui de usar.
A tentativa de ruptura nasce da contradição antagônica entre, de um lado, as possibilidades de progresso social e individual colocadas pelo estágio material de desenvolvimento daquelas sociedades e, de outro, as formas arcaicas de organização social e política.
Os Estados Unidos têm boa inteligência (informação). Daí terem optado por não sustentar o presidente do Egito na hora da dificuldade. Seria inútil. Se o exército estava — como se comprovou depois — contra Hosni Mubarak, quem iria aplicar na vida real a operação de apoio?
Quem ou que país cederia os soldados para transformar a Praça Tahrir numa versão egípcia da Praça da Paz Celestial?
Desde o início da coisa na Tunísia, Estados Unidos e aliados cuidam de colocar um pé no futuro. Assim deve ser vista a intervenção na Líbia. Seria politicamente insustentável deixar Kadafi dizimar a oposição. Seria um desastre político e de imagem, na Líbia e fora dela.
Funciona portanto como efeito demonstração, de quem está ali e deseja continuar. O chamado “Ocidente” mostra disposição para intervir, e não do lado que procura bloquear o processo. Mostra que deve ser levado em consideração por quem calcula no mundo árabe. E mostra que não é necessariamente inimigo das massas rebeldes.
A atitude vai inspirar temor nos déspotas que imaginam poder chegar ao grau de violência que Kadafi já projetava e executava contra o povo líbio. Vai também funcionar como antídoto à narrativa de que americanos e europeus só se metem no mundo árabe para apoiar as ditaduras e o massacre do direito dos povos. É um ativo e tanto.
Desde que, naturalmente, a coisa não desemboque em ocupações. A estratégia na Líbia, do ângulo de quem intervém, é um upgrade. O poderio bélico das potências entra a serviço de uma facção política, que fica encarregada de ganhar a guerra terrestre ou provocar a insurreição. Ou as duas coisas combinadas.
Convém não subestimar potências com currículo colonial. O colonialismo acabou, mas o neocolonialismo vai bem — e hoje até desperta alguma simpatia entre os antigos oprimidos.
Vide o noticiário de todos os dias sobre a beleza que é o fluxo de capital e investimentos do Primeiro para o Terceiro Mundo. Expressão que por sinal saiu de moda. Repararam?
Mesmo a estatura dos líderes só pode ser definitivamente diagnosticada depois do resultado de suas ações.
Não é proibido tentar prever desfechos, é um direito democrático. Mas talvez não seja a coisa mais útil a fazer em situações assim. Talvez a energia precise antes ser investida em tentar entender o processo.

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